As mortes em queimas de amontoados – Recorrentes e ignoradas

 Por: Emanuel de Oliveira, Raquel Lobo-do-Vale e Maria Conceição Colaço Baseado na investigação publicada em artigo científico com o título ...

 Por: Emanuel de Oliveira, Raquel Lobo-do-Vale e Maria Conceição Colaço

Baseado na investigação publicada em artigo científico com o título "Análise de incidentes em queimas tradicionais em Portugal" (Incident analysis of traditional burns in Portugal).

Em Portugal, anualmente são publicadas notícias referindo-se a um ou dois casos de idosos mortos ou feridos, cujos incidentes resultam do uso do fogo na queima de sobrantes agrícolas e florestais. Em 2023, ocorreram dois incidentes (um morto e um ferido) e em 2024,  até ao momento, já ocorreram, igualmente, dois incidentes, com um ferido com 75 anos de idade e um morto com 90 anos. No ano 2022, todos os incidentes (4) com queimas de sobrantes agrícolas causaram a morte das vítimas. 

Embora seja um caso recorrente no nosso país, em particular nas zonas rurais, o seu impacto tem-se arrastado ao longo dos anos na ausência de políticas e de medidas com vista à redução deste tipo de incidentes.

Figura 1 - Destaques de notícias de diversas fontes jornalísticas associadas a incidentes em queimas de amontoados em Portugal

O presente artigo resume o artigo publicado na Revista “International Journal of Disaster Risk Reduction”, o qual é reproduzido na íntegra no Capítulo III que conclui a Parte I da tese. Os incidentes com o uso do fogo para queima de amontoados de resíduos agrícolas e florestais constituem um tema de atualidade, porém este artigo é inédito, permitindo a abertura de uma nova linha de investigação associada ao uso do fogo.

Desde uma perspetiva mais social, analisa-se a evolução dos incidentes provocados pelo uso do fogo por parte da população rural portuguesa, em queimas de amontoados de resíduos agrícolas e florestais, entre 2008 e 2021.  No entanto, destaca-se o ano 2018 pelo registo máximo de incidentes num ano, precisamente 20 incidentes. Este estudo teve como foco a análise dos diversos fatores que podem explicar este excecional aumento de número de casos.

Figura 2 - Distribuição geográfica de incidentes (Feridos - cruz vermelha; Mortes - cruz negra) entre 2008 e 2021 em Portugal.

As mudanças socioeconómicas que afetaram os territórios rurais portugueses nas últimas décadas, caracterizados pelo despovoamento, o envelhecimento e isolamento da população, a perda de usos e práticas tradicionais, têm alterado profundamente a paisagem. O abandono das práticas tradicionais, em particular da pecuária extensiva e da agricultura, conduziram a uma elevada acumulação da biomassa nas zonas não geridas, aumentando a carga de combustível disponível e criando um elevado risco de incêndio florestal. Apesar disto, a população das zonas rurais segue a usar o fogo na gestão do território, porém nem sempre com o controlo adequado.

Segundo dados oficiais do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), as queimas consideradas como “uso tradicional do fogo” são uma causa frequente de incêndios florestais que se incluem na categoria de negligência. Por exemplo, em 2020, os incêndios causados por este uso do fogo representaram 27% do total de 9 619 incêndios em Portugal continental (ICNF, 2022). No entanto, os incêndios provocados por estas queimas produziram-se com uma gravidade meteorológica muito baixa e só representaram 2% da superfície total ardida. 

As queimas “tradicionais” (ver artigo anterior sobre este conceito) não só podem ser a causa de incêndios florestais, mas também constituem um risco cada vez mais presente de incidentes que derivam em feridos ou inclusive a morte. Anualmente, surgem nos meios de comunicação registos sobre incidentes na Europa, especialmente na bacia mediterrânica, na sua maioria envolvendo idosos que utilizam o fogo para a gestão dos combustíveis. Em 2018, o número de incidentes em Portugal resultantes de queimas de amontoados foi muito superior ao que é habitual. 

Figura 3 - a) Número de incidentes (mortos e feridos) durante 2008-2021 em Portugal. b) Número médio de incidentes por ano antes, durante e após 2018, respetivamente, 2008-2017, 2018 e 2019-2021

Entre 2008 e 2021 registaram-se um total de 54 incidentes no uso do fogo para a queima de amontoados de resíduos agrícolas ou florestais, com 78% de vítimas mortais (42). O aumento excecional dos incidentes em 2018 (20, destes resultaram em16 vítimas mortais) constituiu 37% do total de incidentes do período de análise. A maioria dos incidentes envolveram pessoas idosas (82%), principalmente homens (80%). 

Figura 4 - Distribuição geográfica dos incidentes por período 2008-2017; 2018; 2019-2021

Março e outubro foram os meses nos que se produziram mais incidentes. Ao analisarmos detalhadamente as condições meteorológicas, sociais e legislativas, constatou-se que o principal impulsor por trás do excecional aumento de incidentes em 2018 foi, muito provavelmente, a forte pressão para a gestão da vegetação, devido a um prazo cada vez mais limitado para a redução do combustível em zonas de interface urbano-florestal, em conjunto com medidas de fiscalização mais estritas e uma aplicação da lei que duplicou as multas por incumprimento.

Em 2018, as notícias evidenciaram incidentes em quase todos os meses, sem diferenças significativas na distribuição mensal. Cabe destacar que em 2017, Portugal viveu a temporada de incêndios florestais mais grave de que há memória, com o maior número de vítimas mortais, danos e área ardida (mais de 100 pessoas perderam a vida, queimaram-se mais de 500.000 hectares e várias florestas emblemáticas foram afetadas). O impacto sofrido na sociedade em geral, levou a que aumentasse a consciencialização sobre o perigo dos incêndios florestais e a população tivesse mais receio de estar em zonas florestais, sobretudo no verão. 

Como consequência da regulamentação de 2018, houve uma pressa em cumprir a lei (era preciso dar o exemplo), o que levou a uma especulação de preços para a contratação de pessoal qualificado para efetuar as operações de limpeza necessárias, como se constatou nas páginas de vários jornais da época. O resultado foi um custo elevado e inacessível para muitos, sobretudo para as pessoas idosas (das zonas rurais) com pensões de reforma muito baixas. O fogo, tal como no passado, constitui uma ferramenta mais acessível e barata para a gestão da vegetação, representando também um maior risco de incidentes e, em particular, para a população mais idosa. 

Figura 5 - Número de pesquisas obtidas a partir da ferramenta Google Trends para os três períodos considerados: antes (2008-2017), durante 2018 e depois de 2018 (2019-2021).

Este gráfico do Google Trends das pesquisas registadas para "limpeza de terrenos" também demonstra a tendência que acompanhou os incidentes.

Os dados da investigação indicam que o significativo aumento dos incidentes (com feridos e mortos) em 2018 pode atribuir-se ao endurecimento da legislação, juntamente com o aumento do valor das multas e a intensificação e pressão das ações de fiscalização, principalmente sobre uma população rural envelhecida e mais vulnerável. Constata-se também, o que parece constituir uma nova mudança no uso do fogo pelas comunidades rurais que, por uma nova pressão normativa em matéria de defesa da floresta contra incêndios, se verifica uma transição do uso agrícola do fogo para práticas associadas à redução e gestão do combustível, em particular nas zonas de interface urbano-florestal, afastando-se assim do ancestral uso tradicional do fogo. Se, por um lado, a perda de conhecimentos sobre o uso do fogo, especialmente condicionada pelas referidas limitações legais e as sanções, conduz a um uso proscrito do fogo, por outro, a pressão legislativa em matéria de defesa da floresta contra os incêndios cria, também, uma maior pressão sobre as comunidades rurais portuguesas.

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As mortes em queimas de amontoados – Recorrentes e ignoradas
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