MAIN MENU

Footer Pages

quarta-feira, 1 de maio de 2024

Fogo tradicional em Portugal. Ainda existe?

 Por: Emanuel de Oliveira; M. Conceição Colaço; Paulo M. Fernandes e Ana Catarina Sequeira


Baseado na investigação publicada em artigo científico com o título“Vestígios do uso tradicional do fogo em Portugal: uma análise histórica” (Remains of traditional fire use in Portugal: A historical analysis). Este artigo é publicado integralmente no Capítulo II da Tese.

As habilidades para produzir, controlar e utilizar o fogo têm sido determinantes na evolução da espécie humana desde os primórdios da Humanidade. A primeira Era energética começou há mais de 300.000 anos, quando a Humanidade começou a utilizar a energia do fogo pela queima de biomassa. Com o controlo desta poderosa energia, os humanos moldaram seu território e a si mesmos como indivíduos a nível físico, cognitivo e social. O uso do fogo mudou as paisagens, permitindo o surgimento e desenvolvimento das sociedades caçadoras-recolectoras. Foi um fator determinante na criação e expansão das sociedades pastoris durante o Neolítico. A presença humana no território português desde sempre implicou um uso contínuo do fogo para gerir a paisagem. Esta paisagem foi modelada pelo fogo associado a práticas tradicionais dentro de um enraizado e complexo sistema agrossilvopastoril, desenvolvido e melhorado de geração em geração. Desde o Neolítico até o século XIX, o fogo acompanhou a agricultura e o pastoreio, inicialmente itinerantes e mais tarde rotativos, gerando paisagens culturais. As paisagens culturais são, portanto, o resultado das atividades de gestão de recursos de diferentes sociedades, e a evolução da paisagem portuguesa foi conduzida pelas sociedades que se converteram em dominantes nos diferentes períodos.
No contexto deste artigo, os usos tradicionais, rurais, nativos ou indígenas do fogo são sinónimos e referem-se aos usos do fogo que têm coexistido com as ignições provocadas por raios desde a origem da humanidade e que têm passado de geração em geração por transmissão cultural, isto é, o processo através do qual os elementos culturais se transmitem de uma geração à seguinte. Em outras palavras, o uso tradicional do fogo é o uso do fogo por parte das comunidades rurais com fins de gestão da terra e dos recursos baseado nos conhecimentos tradicionais. Aqui identificam-se e descrevem-se as práticas tradicionais implicadas nos diferentes usos do fogo em Portugal apresentando o que resta destas práticas. Analisamos a documentação histórica sobre os usos do fogo, pesquisamos os seus vínculos com outras práticas tradicionais e comparamo-las com os usos atuais do fogo no século XXI. A escala temporária considerada foi desde a Fundação de Portugal (século XII) até finais do século XIX. Dos 250 documentos que se revisaram, 135 deles faziam referência ao uso do fogo, obtendo-se 124 citações relevantes (Figura 1).

Figura 1- Número de citações por categoria e período. 

As fontes documentais históricas revistas sobre os usos do fogo permitiram identificar suas diversas finalidades na gestão dos recursos por parte das comunidades rurais em Portugal e as técnicas ao longo dos séculos até à sua limitação. Também, foi possível, compreender a diferença entre a transferência e a transmissão do conhecimento tradicional do fogo. A primeira pressupõe a transferência geracional do conhecimento, isto é, através da aplicabilidade (demonstração) inerente de práticas e técnicas de gestão sustentável dos recursos e do meio ambiente para as comunidades locais. A segunda não implica prática e pode ser apenas teórica. Atualmente, existe uma visão reducionista do uso tradicional do fogo, mas os registos encontrados mostram a existência de vários usos no passado (Figura 2). 
Por conseguinte, o conhecimento tradicional do fogo é bem mais amplo e tão diverso numa comunidade como a complexidade da gestão dos recursos para apoiar as diferentes atividades.
Figura 2 - Calendário do uso tradicional do fogo em Portugal baseado na literatura e nos registos históricos. 

Dentro das comunidades tradicionais, a subsistência depende da fenologia da vegetação, bem seja de cultivos ou plantas silvestres, das épocas de cria e do tipo de gado, dos períodos de caça e de proteção dos juvenis das espécies cinegéticas, das necessidades sanitárias, do controlo de pragas, da proteção contra a fauna silvestre, da apicultura e da produção de carvão vegetal. Uma vez que as comunidades rurais tradicionais dependem da estacionalidade para obter provisões, deve ter-se em conta um regime de fogo tradicional (Figura 3). O regime de fogo tradicional implica um uso do fogo segundo critérios específicos de estacionalidade, severidade, intensidade e recorrência para atingir os diferentes fins. Por exemplo, o fogo para a renovação dos pastagens deve ser de baixa intensidade para promover a rebentação de arbustos e a germinação de certas plantas herbáceas importantes para a alimentação do gado na estação de verão. Este tipo de fogo produz-se principalmente durante o inverno e costuma ser fácil de controlar e autoextinguir. Por outro lado, no caso dos fogos associados ao arroteamento (abertura de novas terras) de terras de cultivo realizavam-se depois do pastoreio e a roça e exigiam uma maior intensidade para facilitar a rotura do solo pelo arado mediante tração animal e procurando a máxima quantidade de cinzas para sua fertilização. Neste caso, agosto era o mês apropriado para esta árdua tarefa. Por último, a recorrência do fogo é uma condição que varia em função do regime de exploração, qualidade do solo e do cultivo ou aproveitamento associado.

Figura 3 - Regime do fogo tradicional 

Até à segunda metade do século XIX, o uso diversificado do fogo pelas comunidades portuguesas fazia parte de um sistema equilibrado. Depois, com as reformas liberais e a industrialização do país trouxeram consigo poderosos interesses que romperiam para sempre com o ancestral sistema agrossilvopastoril. A amortização das terras comunais (privatização dos baldios), a intensificação obrigatória da agricultura, principalmente cerealista, e a demanda de carvão vegetal para a indústria emergente, apoiada pelas máquinas de vapor e os usos domésticos, contribuíram fortemente à desflorestação. Naquela época, o fogo utilizava-se para as práticas de gestão da terra que consistiam em converter as novas propriedades desflorestadas em campos de cereais e satisfazendo a grande demanda de carvão vegetal para a indústria e os usos domésticos. As antigas práticas mantiveram-se nos territórios onde o pastoreio utilizava o que restou da privatização dos baldios e prevalecia a agricultura baseada em “sortes” com partilha anual para o cultivo. No entanto, segundo nossas conclusões, culpava-se a sociedade rural como principal responsável pela desflorestação do país devido a práticas como o pastoreio e o necessário uso do fogo. Entre finais do século XIX e mediados do século XX, a agricultura cerealista e os sectores industriais competiam pelos recursos florestais, apoiados por uma legislação que limitava o pastoreio e o uso do fogo. Este condicionamento e proibição ao longo a mais de 150 anos, junto com outros fatores como a motorização e intensificação agrícola, a fertilização inorgânica e a silvicultura baseada em monoculturas, conduziu a uma diminuição da maioria das práticas rurais e ao abandono da maioria dos usos do fogo, o que rompeu a transferência geracional do conhecimento ancestral. Esta perda deu lugar a uma generalização e redução dos usos diversificados a uma definição genérica e simplista do uso do fogo associado às práticas rurais que ainda permanecem. Vários autores europeus referem-se a este uso do fogo como tradicional, associando às práticas atuais das comunidades rurais, como o corte e queima de resíduos agrícolas e florestais e as queimas com fins pastoris. No entanto, estas práticas só representam vestígios dos usos do fogo do passado e estão associadas a muitas das causas dos incêndios florestais em Portugal. A roça e queima perdeu sua finalidade de obtenção de fertilizante agrícola e agora só se trata de corte e eliminação de resíduos de cultivos mediante o fogo. O uso do fogo na renovação de pastagens passou a ser ilegal, mas as comunidades do norte da Península Ibéria ainda mantêm a produção de gado em regime extensivo e uma gestão partilhada da terra (essencialmente comunal/baldios) e seguem a usar o fogo. Esta prática reúne alguns dos conhecimentos e aplicabilidade do passado (estacionalidade, natureza de baixa intensidade, período de recorrência, autoextinção), mas as imposições e limitações legais têm eliminado a possibilidade da sua aplicação pelas comunidades pastoris e têm mudado as práticas tradicionais do passado. 

O processo português de condicionamento legal do uso do fogo das comunidades tradicionais é bastante similar ao que os colonos impuseram aos nativos americanos e australianos. 
Para as comunidades tradicionais, o fogo é a forma de controlar e gerir uma importante fonte de energia e os recursos naturais, pelo que é importantíssimo para o seu empoderamento. Portanto, limitar e proibir o seu uso significa voltar a tirar poder às comunidades, impactando assim na gestão de seus recursos, ou seja, na sua sustentabilidade. 
O fogo em Portugal já não é uma atividade partilhada pela comunidade devido à legislação vigente. Os seus utilizadores optam por colocar o fogo e não "pastorear" o fogo para evitar sanções penais, o que às vezes provoca incêndios florestais, sobretudo entre as estações de outono e primavera. É impossível referir-se às atuais práticas de fogo mais comumente utilizadas pelas comunidades rurais em Portugal como fogo tradicional, já que é só um vestígio do passado. Hoje em dia trata-se de um uso tradicional do fogo devido à sua aplicação local. No entanto, já não deriva da transferência geracional do conhecimento tradicional do fogo, como segue sendo o caso em algumas comunidades tradicionais e nativas de outras regiões do mundo. 
As novas sociedades que influem nas zonas rurais têm provocado a exclusão do fogo da paisagem, o que tem desvirtuado a importância do fogo antropogénico nos processos ecológicos dos ecossistemas adaptados e dependentes do fogo. 
Na atualidade, o fogo já não está ligado com a paisagem, e os usos do fogo são tratados desde uma perspetiva simplista e reducionista refletida na legislação. É imperativo devolver o fogo às comunidades rurais tradicionais, criando mecanismos de capacitação e responsabilidade para o seu uso, em particular, nas comunidades rurais da Península Ibéria devido à perda de conhecimentos tradicionais sobre o uso do fogo. Igualmente, os técnicos de queima prescrita devem receber formação mais ampla do que apenas a prescrição meteorológica, estabelecida para controlar o fogo e seus impactos diretos sobre o terreno. A formação dos técnicos deveria também reproduzir os conhecimentos tradicionais sobre o fogo para adaptar o seu uso aos ecossistemas locais e às necessidades das comunidades locais.