O presente artigo foi publicado na Revista Incendios y Riesgos Naturales, Núm. 4, Setembro 2021, pp. 24 - 26 e constitui um resumo do trabalho de investigação realizado por Emanuel Oliveira e Conceição Colaço.
Emanuel de Oliveira · M. Conceição Colaço
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Escape de uma queima de sobrantes (Vila Nova de Cerveira - Portugal). Oliveira, E. 2013 |
"Entre os anos 2008 e 2020 ocorreram 44 incidentes em Portugal pelo uso do fogo, dos quais resultaram em 39 mortes"
Figura 1 - Distribuição geográfica dos incidentes |
O objetivo deste trabalho consistiu na identificação dos vários incidentes ocorridos entre os anos de 2008 e 2020 e na análise de quais foram os fatores meteorológicos, sociais ou políticos que poderiam explicar o aumento do número de incidentes em Portugal. Este tipo de estudo pode também ser necessário em outros países.
Como metodologia realizou-se uma análise de jornais nacionais e regionais, identificando o número de incidentes, a data, o género e a idade dos acidentados, assim como outras informações consideradas relevantes para a investigação. Os incidentes identificados foram contrastados com os dados oficiais do sistema de gestão e registo de incêndios dos serviços florestais de Portugal (SGIF – Sistema de Gestão de Incêndios Florestais, do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas), assim como com a meteorologia associada ao incidente, com os dados sociodemográficos dos municípios com incidentes (dados estatísticos oficiais do INE – Instituto Nacional de Estatística) e com a conjuntura legislativa.
Dos principais resultados do estudo, destaca-se que entre os anos 2008 e 2020 ocorreram 44 incidentes que foram notícia divulgada nos jornais nacionais e regionais. Destes incidentes, houve 39 mortes no território português (38 em território continental e 1 morte nos Açores), com um abrupto incremento no ano 2018 (gráfico 1).
Gráfico 1 - Distribuição anual do número de incidentes |
Os incidentes distribuem-se por todos os meses do ano, com exceção nos meses de julho e agosto, onde o uso do fogo é amplamente proibido. No entanto, regista-se um maior predomínio de incidentes nos meses de abril e outubro que coincidem, respetivamente, com o final dos prazos legais para a gestão do combustível antes do período típico de incêndios e o final da época das colheitas e do término do período de limitação do uso do fogo pós-verão (OTI, 2021). É de destacar que o mês de setembro regista 11% de incidentes e todos com mortes. Note-se que corresponde a um período de restrição do uso do fogo e não deveríamos ter este tipo de incidentes nesta estação do ano.
A idade é um fator crítico. Dos 44 incidentes ocorridos entre 2008 e 2020, 80% dos casos envolvem pessoas com mais de 65 anos. Outro dos principais dados está relacionado com a distribuição percentual dos incidentes por género, verificando-se que 82% dos incidentes implicam a indivíduos do sexo masculino e apenas 18% do sexo feminino.
Dos incidentes que resultaram na morte dos usuários do fogo, 69% faziam a queima sozinhos (maioritariamente queimas de sobrantes) e apenas 10% encontravam-se acompanhados. Para as restantes fatalidades (21%), as notícias nos meios de comunicação não apresentam detalhes sobre essa informação (acompanhados ou sozinhos).
A caraterização dos incidentes por classe etária permite a perceção do contexto social do uso do fogo. Comparando com os índices de envelhecimento das localidades onde ocorreram os incidentes, verifica-se que 60% dos casos correspondem a territórios com um índice superior ao valor médio nacional (127.8) e 34% corresponde a um índice superior a 300. Por outro lado, constata-se que 41% dos incidentes ocorrem em territórios de muito baixa densidade (<50 habitantes/km2). Tudo isto explica o risco associado ao uso do fogo por uma população envelhecida, isolada e condicionada pela falta de renovação da população que permita manter as práticas tradicionais com segurança, onde se inclui o uso do fogo como ferramenta rural.
Se por um lado, as condições sociodemográficas presentes no estudo dão-nos pistas sobre o usuário do fogo, por outro lado, as condições meteorológicas poderão dificultar o seu uso, uma vez que determinam o comportamento do fogo e consequentemente o seu controlo, em particular no que se refere à intensidade, à radiação e à propagação. Entre outros dados meteorológicos, analisaram-se os dados de DSR (Daily Severity Rating) que deriva do índice FWI (Fire Weather Index) e indica a dificuldade nas operações de extinção do fogo e reflete a quantidade de esforço necessária para a sua supressão (Rego & Colaço 2018). Assim, quanto mais elevado seja o valor de DSR mais complexo e difícil será o controle e extinção do fogo. Ao analisar do DSR, verificou-se que 75% dos incidentes ocorreram em dias com valores muito baixos, pelo que não indicava uma relação com a dificuldade das queimas e consequentes incidentes. No entanto, os subíndices do sistema FWI, relacionados com a humidade dos combustíveis finos (FFMC) e o índice de propagação inicial (ISI), permite-nos compreender a dificuldade do controlo da propagação e da intensidade do fogo nos dias em que ocorreram os incidentes. A grande maioria dos incidentes, cerca de 79% do total, produziram-se em situações de valores moderados a alto e apenas 21% com valores baixos de ISI e de FFMC. Como o vento é um elemento essencial na determinação do ISI, associado à humidade dos combustíveis finos, pode ter influenciado de modo decisivo na grande maioria dos incidentes, devido à dificuldade para controlar a queima e a resistência à intensidade e radiação libertada pelo fogo, resultando nos incidentes.
Escape de uma queima de sobrantes (Vila Nova de Cerveira - Portugal). Oliveira, E. 2013 |
Se por um lado, estes dados sociodemográficos e meteorológicos permitem perceber o potencial risco da população na relação ao uso do fogo e os consequentes incidentes, não explicam o brusco incremento no ano 2018. Neste caso, é necessário observar a política e contexto social em que se produziu este aumento. Logo após os grandes incêndios que afetaram o país em 2017, resultando em mortes de civis, com uma áreas ardida superior a 500 mil hectares e a destruição de inúmeras habitações, considerou-se prioritária a prevenção e a responsabilidade da população na gestão dos combustíveis, particularmente, ao redor do edificado e na rede viária, ou seja, a “limpeza das propriedades rústicas” foi o principal objetivo de uma legislação mais exigente e das autoridades que a fiscalizam. A estas imposições legais soma-se o incremento (em dobro) do valor das multas para o ano 2018 para os responsáveis pelo incumprimento da obrigação de limpeza das propriedades sob a sua gestão. Estas imposições levaram a uma verdadeira corrida para o cumprimento da lei, conduzindo à especulação dos preços da prestação de serviços de desmatamento, os quais resultam em encargos muito elevados para uma população maioritariamente rural e idosa, sem grandes recursos (em muitos dos casos com pensões de reforma muito baixas).
A pressão das multas e da fiscalização pode ter sido a principal razão pela qual esta população envelhecida não cumprisse com todas as regras para queimar de forma segura (dias húmidos e sem vento, nem queimar só). Isto resultou num número de vítimas anormalmente alto em relação a anos anteriores. Igualmente, nos anos seguintes, devido a um relaxamento da pressão da fiscalização e o efeito da pandemia, com mais população nas zonas rurais, pode ter contribuído para a redução do número de incidentes relacionados com o uso do fogo.
Agradecimentos:
Emanuel Oliveira. Agrónomo. Consultor Independente especializado em Incêndios Florestais; Formador de Queimas Prescritas. Portugal. https://orcid.org/0000-0002-9594-5052 |
M. Conceição Colaço. PhD on Education, Forest Engineer, researcher at CEABN-InBIO from the Instituto Superior de Agronomia. https://orcid.org/0000-0003-0472-3065 |