As vítimas da incompetência

Mais de 200 bombeiros mortos desde a década de 80 Pedro Oliveira Pinto/Marcelo Sá Carvalho 16 Ago, 2013, 13:20 / atualizado em 16 Ago,...

Mais de 200 bombeiros mortos desde a década de 80


Pedro Oliveira Pinto/Marcelo Sá Carvalho
16 Ago, 2013, 13:20 / atualizado em 16 Ago, 2013, 16:31

«Desde a década de 80 foram mais de 200 os bombeiros que perderam a vida em serviço. Cento e quatro morreram em combate a fogos florestais. Na história recente destaca-se pela negativa o ano de 2006, altura em que seis bombeiros perderam a vida na Guarda, cinco deles eram chilenos.»
Font: RTP online

Seguidamente, transcreve-se o artigo de Lino Teixeira, Engenheiro Silvicultor, publicado no jornal "O Diário", em 5 de Setembro de 1986. Um artigo de opinião com cerca de 30 anos que não deixa de ser atual. A sensibilidade do autor é hoje partilhada por um número cada vez maior de técnicos e de combatentes, algo a que os políticos com competências não podem nem devem ficar alheios. 
O combate aos incêndios florestais requer coragem e esta deve ser demonstrada na aplicação de políticas que mudem um sistema que já demonstrou que não é eficaz e muito menos eficiente.

As vítimas da incompetência

Lino Teixeira, Eng.º Silvicultor
Jornal O Diário, 5 de Setembro de 1986
Artigo do Jornal O Diário, 5 de Setembro de 1986. Clique para aumentar.
Em vez de se organizar a luta contra os incêndios florestais com base no labor, na experiência, no saber dos profissionais da floresta e na colaboração íntima de quem nela vive, prefere-se arranjar heróis e mártires, atirando para as fogueiras com cidadãos abnegados ao bem público, mas desconhecedores das realidades florestais.

Perante as tragédias de Águeda e Armamar, perante os deslizes que por toda a parte e todos os anos se vão manifestando na luta contra os incêndios florestais, caso seria para que se gritasse basta e se tentasse emendar os erros, rever, melhorar ou modificar radicalmente o sistema em vigor. Mas, não! Paradoxalmente, mesmo em face do sudário de desgraças que por aí estão patentes por esse país fora, continua a afirmar-se que está tudo bem, que não há falhas de ninguém, que ninguém é culpado ou responsável pelo que acontece.
Morrem bombeiros, choram-se umas lágrimas, toma-se um ar contristado de circunstância, altas personalidades apresentam pêsames, fazem-se promessas, proferem-se ameaças contra criminosos desconhecidos e… pronto. Depois, tudo fica como dantes e deixa-se ao tempo o cuidado de tudo fazer esquecer.

Ninguém se atreve a dizer o que deve ser dito e insiste-se em tecer loas à «organização» oficial como se tudo estivesse a correr às mil maravilhas, atingindo-se nesta senda as raias da ignorância, do descaramento e até do ridículo.
Dizer como se disse, que a tragédia de Águeda só foi possível porque fogo apareceu em Junho, quando os luminares responsáveis só o previam para Julho, não é uma justificação sincera nem desculpa que se aceite, tal como do mesmo modo não é aceitável que se engane ou tente enganar o público com alusões e fatalismos pacóvios (…) uns, a tibieza de outros e a abulia de quase todos.
Capa da Revista Alto Risco com as
vítimas mortais em combate. Ano 2013

As nossas corporações de bombeiros são todas elas, pelo menos ao nível das vilas e pequenas cidades, associações humanitárias de cidadãos e de cidadãs que voluntariamente se dispõem a valer aos seus semelhantes sem nada receberem em troca, tendo por missão primacial e fundamental a de salvar vidas. É com os bombeiros que nos encontramos e com quem contamos na hora da desgraça. Isto, porém, não significa que para cima deles se atirem com tarefas e responsabilidades que a outros pertencem.
Os nossos bombeiros são gente que actua voluntariamente e se sacrifica pelo bem comum, são gente que chega a dar a vida para salvar vidas, mas como se sabe são essencialmente bombeiros urbanos naturalmente preparados para agirem nas cidades, vilas e aldeias. Não são bombeiros rurais, e muito menos bombeiros florestais, estes a requererem especialização e profissionalização apropriadas. O bombeiro florestal não pode (…) obedeça apenas aos seus próprios impulsos de salvador de vidas e de bens.

Necessário é que seja um profundo conhecedor dos terrenos que pisa e como os deve pisar, dos fenómenos físicos que se desencadeiam no decorrer do fogo florestal e da influência que nesse desencadeamento têm a natureza e o estado da vegetação, as condições da atmosfera, a orografia, etc. Terá, enfim, o bombeiro florestal que possuir uma grande gama de conhecimentos de carácter científico que não estão ao alcance de qualquer um.

É por isso que na Espanha, na Itália, na Alemanha, nos Estados Unidos da América, por quase todo o mundo se criaram corporações de bombeiros florestais especializados e profissionalizados e se entregou toda a orgânica de defesa dos respectivos patrimónios silvícolas aos técnicos da floresta, obviamente considerados como os únicos e legítimos peritos na matéria.
Em Portugal também se pensou assim noutros tempos, mantendo os Serviços Florestais (…) a luta contra os fogos que eram sempre combatidos e apagados pelos técnicos, guardas e restantes trabalhadores florestais, com base em planos de defesa previamente estudados para cada mata ou grupo de matas, só em casos muito raros se recorrendo à colaboração dos bombeiros, da GNR e do Exército.

Os Serviços Florestais podem orgulhar-se das suas belas tradições no domínio da luta contra os incêndios, conseguindo durante muitos anos salvaguardar as matas que lhes estavam entregues, da destruição pelo fogo. Os senões e os falhanços só apareceram nos fins da década de 50, quando levianamente se lhes impôs que estendessem a sua acção às matas privadas, sem que primeiro se reestruturassem os Serviços para esse efeito, os apetrechassem devidamente em homens e equipamento, enfim sem lhes conceder o apoio indispensável para poderem agir com eficácia na modificação e melhoria do estado natural, florestal e legal das grandes áreas arborizadas a proteger.

(…) responsável por muita coisa triste, situação que se manteve até 1978, altura em que, mercê dum acordo firmado entre os representantes do MAI, do MAP e dos bombeiros, se entendeu que todas as responsabilidades deveriam recair inteiras sobre as corporações de bombeiros locais, tanto no que se refere à táctica e estratégia a adoptar ao combate aos fogos, como aos métodos a usar para  os extinguir e ao planeamento e utilização mais conveniente dos recursos materiais e humanos porventura disponíveis. Aos técnicos e restante pessoal florestal ficou cometido somente a detecção dos sinistros, mesmo para as matas do Estado. Atingiu-se, assim, o cúmulo da insensatez e do caricato ao obrigarem-se engenheiros e todos os que trabalham nas matas a manterem-se abúlicos quando o incêndio surge, reduzidos como foram à triste condição de meros chamadores de bombeiros e passivos espectadores das suas actuações.


"Grosso do combate aos fogos é
feito por estudantes em férias"
Em vez de se organizar a luta contra os incêndios florestais (…) colaboração íntima de quem nela vive, prefere-se arranjar heróis e mártires, atirando para as fogueiras com cidadãos abnegados ao bem público, mas que nem sequer são gente do campo. Os nossos bombeiros voluntários que estão a morrer nos incêndios, exercem as mais variadas profissões, mas difícil será encontrar entre eles um camponês, um proprietário rural que não seja absentista, um pastor, um lenhador ou um serrano habituado a calcorrear montes e vales, a roçar matos ou a desbravar brenhas silváticas.

É certo que no passado os florestais também tiveram as suas derrotas e infortúnios, mas isso não era nem é a razão para que se admita o terem sido escorraçados das matas e impedidos de ter voz no momento em que o fogo aparece, cedendo o seu lidimo lugar a peregrinos mesteirais que nada têm a ver com a vida silvícola.

Exigir, por exemplo, como acontece hoje em dia, que um engenheiro silvicultor com dezenas de anos de experiência a lidar com as realidades das matas e a dirigir combates a incêndios florestais, se conserve na quietude como simples mirone ou se submeta incondicionalmente às ordens ou directivas do comandante dos bombeiros locais, se isto não é loucura é pior, porque é brincar com coisas muito sérias, é crime, é incompetência.

Os bombeiros que morreram em Águeda e em Armamar e os que ainda poderão vir a morrer não se sabe quando nem onde, são as vítimas da incompetência dos que, a alto nível dirigem a luta contra os incêndios florestais.




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